Jards Macalé fez o hino nacional de quem foi feliz nos anos 1970

Demóstenes Torres

Não duvido de jeito nenhum que Jards Macalé, pouco antes de morrer, neste 17.nov.2025, tenha acordado de uma cirurgia cantando “Meu nome é Gal”. Notícia oficial, séria. Era o que esperaria dele, o que esperaria que acontecesse com ele, que continuasse a despertar “com toda a energia e bom humor que sempre teve”. Fico imaginando-o a se livrar de fios, em meio a máquinas e médicos, e soltando a voz com os versos de Roberto e Erasmo Carlos, citados como ele na récita de Gal Costa. O que lhe restasse de voz resgatada dos pulmões atingidos pelo enfisema letal.
Na Nova York agora em declínio, com as famosas ruas tomadas pelos dependentes químicos, salvam-se os bares cujos espetáculos são estrelados por Macalés cantando em inglês, como vi o próprio tantas vezes e tantas vezes melhor. Ao saber de sua passagem, me ecoou na mente sua interpretação maravilhosa de “Blue suede shoes”, canção consagrada nas vozes de Carl Perkins e Elvis Presley, nessa sequência. Relembro um show em São Paulo, ele, o violão e os versos de Perkins – sem os sapatos de camurça azul, usados por Perkins na poesia e por Elvis em público. Foi há cerca de 10 anos. Vão ecoar por mais uns 100.
Millenials, X, Y, Z, Alpha, analfas e outras gerações da era da tela não alcançaram o nível de seus antepassados, alguns deles ainda parte do presente. Dois que se despediram em novembro, Gal (em 2022) e Jards (em 2025) se entrelaçaram na arte. Ele colocou no repertório dela algumas de suas belíssimas pérolas – logo Gal, que de qualquer cascalho expelia joia. Lamenta-se que esse pessoal esteja indo sem deixar substituto, mas é injusto exigir da atual juventude que um rapaz de 28 anos (Caetano Veloso) se exile, chame os amigos para gravar um álbum (“Transa”) e o diretor musical da mesma idade (Jards) produza para uma vocalista de 25 (Gal) se consagrar como monumento à cultura. Deus já fez o milagre uma vez, porém, não seria exagero pedir bis.
O hino daqueles ‘70s, “Vapor barato”, também é de Jards, com o poeta Waly Salomão, para o diamante sonoro Gal. Sem o calçado de camurça azul, aparece de calças vermelhas, casaco de general, cheio de anéis. No poder, os generais de casaco incomodaram a turma, que se vingava aos poucos: “Transa”, o disco histórico, é uma resposta ao pedido do regime para que Caetano, que havia voltado ao Brasil a passeio, gravasse na Inglaterra algo em comemoração à Transamazônica. O nome do LP não foi até o fim – nem a rodovia, até hoje inconclusa. Como diz o título de sua biografia, “Eu só faço o que quero”, ninguém o convencia e Macalé atravessou o oceano para trabalhar no “Transa” por saudades de Caetano. Amizade e cumplicidade, mais que rimas pobres, são os preciosos sinônimos do convencimento.
Em “Mal secreto”, também com Salomão para Gal, foi capaz desses versos:
“Quando você vai embora
Movo meu rosto no espelho
Minha alma chora”.
Além dos projetos nos quais transbordava sua criatividade, Macalé protagonizou episódios à derradeira vista engraçados – na primeira não devem ter sido. Numa excursão nacional ao lado de Moreira da Silva, foi pego em flagrante fumando maconha. A ida à delegacia rendeu a bem-humorada “Tire os óculos e recolhe o homem”, em que cita Kid Morengueira, com quem se acudiu ao chegarem os policiais,
“Uns dez ou vinte, espadaúdos
Homens que davam a impressão
De terreno de dez de frente
Por vinte e quatro de fundos”.
Os talentos nascidos durante a 2ª Guerra estão deixando a cena depois de muitas batalhas e antes da renovação da tropa. Com seu jeito de cantar e de tocar bem característicos, Macalé virou a saudade que sentia de Caetano, que resiste no front junto com a irmã Maria Bethânia.
Aliás, é outra diferença indiscutível: o professor de violão de Bethânia foi Jards, que aprendeu a tocar o instrumento com Turíbio Santos. Ah, foi aluno de piano de Guerra Peixe e de análise musical de Esther Scliar, tendo como colegas de aula Egberto Gismonti, Luiz Eça, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, Paulo Moura. Para ter ideia do tamanho da perda desta segunda-feira, vá ao Google conferir a representatividade artística desses nomes. E aproveite para digitar Jards Macalé no YouTube e ouvi-lo nas parcerias com esses imortais todos, os vivos e os que estão na memória dos tímpanos.
Aprecie sem moderação igualmente “Contrastes”, de Ismael Silva, que Macalé tornou popular. Ali estão os versos que resumem o início desta semana: “Existe muita tristeza/ Na rua da alegria”. É o paradoxo, ambas duram pouco e ao mesmo tempo não acabam.

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Alan Ribeiro
Alan Ribeiro

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