Demóstenes Torres*
Ainda ecoam nos céus do Norte os tiros de Thomas Crooks que acertaram a orelha de Donald Trump e mataram um bombeiro. O barulho foi tamanho que provocou o abatimento de seu principal concorrente, Joe Biden, uma volta seguida de reviravolta. Os tímpanos do republicano sequer haviam se recuperado quando tiveram de ouvir a azáfama em torno da atual vice-presidente Kamala Harris.
Na verdade, a saída de Biden do páreo livrou os Estados Unidos de grave risco, a sua reeleição. A chance de vitória sobre Trump era a de pangaré contra trem-bala, parceiro, mas é melhor evitar. Vai que… É, não vai mais. Ainda bem para todos, não porque o atual presidente seja velho demais ou tenha saúde de menos, mas por ser excessivamente ruim administrador.
Entre as alternativas para substituí-lo estão Harris, já com delegados suficientes para se lançar, e as ex-primeiras-damas Michelle Obama e Hillary Clinton, além de obscuros governadores.
O problema de Biden para continuar no cargo não foi a idade ou a demência, mas as justificativas fakes, com as quais sua vice concordava e as quais divulgava. Daí, claro, o anúncio de apoio a ela, praticamente consolidada enquanto escrevo este artigo. Porém, tendo a concordar com Trump, que disse ser “mais fácil” derrotá-la. Chegou à Vice-Presidência da maior potência do planeta depois de períodos como procuradora-Geral e senadora da Califórnia. Sua bandeira, quase obsessão: a defesa do aborto. E isso lá é tema que se erga para impedir sua nação de perder para a China o posto de nº 1 na economia mundial? Caberia num podcast sobre saúde pública, não como argumento de quem tem ao alcance da mão as senhas de lançar ogivas que fariam da Terra um amontoado de pó lançado no espaço.
Até agora, Harris fracassou no que lhe foi delegado no âmbito nacional. Biden confiou-lhe a política externa/interna com os imigrantes. Acossados por Trump no mandato anterior, poderiam ser transformados em eleitores democratas. A vice confundiu articulação com mea culpa. Praticamente pedia perdão aos violadores da fronteira com o México. Não se exigiria de uma filha de indiana com jamaicano rigor com quem escolhe outra pátria para viver. Afinal, um dos diferenciais para o êxito norte-americano, da cultura às invenções, é justamente a acolhida aos povos em seu território.
De novo, o que se espera de alguém com quase duas décadas a menos que o adversário, a única missão bem-sucedida de Harris foi ser a primeira autoridade de posto tão significativo a passar pano em hospital de aborteiros. Não, não era solidariedade a mulheres vítimas de violência sexual ou gestantes com fetos anencéfalos ou grávidas com a vida em risco — a vice-presidente dos EUA fez constar em sua agenda oficial o beija-mão a empresários cuja rotina é eliminar fetos.
Tudo bem, o Partido Democrata está pobre de quadros depois de 16 anos de Bill Clinton e Barack Obama, fora os 4 com o apalermado Biden. Tanto é que as opções a Harris, à exceção das duas lembradas no início deste texto, são de provocar riso no touro de Wall Street. Uma delas, Michelle Obama, o cérebro nas políticas públicas do marido, foi descartada sem maiores discussões. E merecia ter sido reincluída. Foi a primeira afro-americana na Casa Branca como Harris foi a primeira vice numa central de aborto. Todavia, não foi desta vez.
Dos mares, o nunca dantes navegado nestes meses de turbulência provocada pela maré mansa de Trump produziu uma onda surfada por seus inimigos: só em descartar Biden já deu ao Democrata o direito a sonhar. Nos dias 15 e 16 de julho, quando o presidente cambaleava, sem cair, a agência Reuters e o instituto Ipsos pesquisaram, descobrindo que Trump e Harris estavam empatados. A ultrapassagem dela, divulgada nesta terça-feira 23/7, foi apenas consequência, 44% a 42%, empate técnico que avermelhou ainda mais o rosto laranja mecânica do republicano.
Mesmo o público racista deve concordar que a cor da pele não interferiu na gestão nem nos dados dos levantamentos. Se o casal Obama se reelegeu e não conseguiu triunfo na sucessão nada tem a ver com gênero ou etnia, pois sua escolhida para tentar era mulher e branca, Hillary Clinton. Igual a Biden, Barack ficou com um pé no terceiro-mundismo, tentando implantar até o Obama Care. Oficialmente, era a Lei de Proteção e Cuidado Acessível ao Paciente, uma versão do brasileiro Sistema Único de Saúde, endeusado por quem tem plano particular e nunca precisou esperar meses por exame e anos por cirurgia. Ou seja, nem Hillary, nem Bill, nem qualquer aliado de Obama ganharia da então zebra Trump. Principalmente com o SUS no currículo.
Equivoca-se quem acha que será cristalizada a ascensão de Harris, em virtude da catarse com o ocaso de Biden. É pauta momentânea. A espera é para ver quem Trump vai derrotar com mais folga, pois deve dar a lógica do comércio e da indústria mundiais, a do resultado prático em cada condado do país continental. E a vice, como seu titular, são o retrato do fiasco. Enquanto Tio Sam perde tempo em debate inócuos, China e Índia avançam, mesmo em condições opostas. Em vez do comércio de armas para todos os lados das guerras, os dois mais populosos do globo preferem o varejo das quinquilharias. No lugar de negócios escusos com governos, abastecem via correios as casas e as lojas dos mais distantes lugares. Mais limpo e mais lucro.
A questão é torcer para que o eleitor americano escolha o que mais o aflige, se a decisão da Suprema Corte contra o aborto ou a expectativa de números e índices sorrirem para o lobo de Wall Street. São os fatos, não os fetos.