Neste Natal, dê Jane Austen e Cecília Meireles de presente,

Demóstenes Torres

A carioca Cecília Meireles foi homenageada pelo Banco Central em 1989, 25 anos após sua morte, com a efígie na nota de 100 cruzados novos. Logo mudou o governo, mudou a moeda e as cédulas foram carimbadas. O belo rosto da escritora passou a conviver com a palavra cruzeiro, em maiúsculas, como um borrão. Mais sorte teve a britânica Jane Austen, cujo nascimento completou 250 anos neste 16 de dezembro de 2025. Sua face, ou como se supõe que fosse a sua aparência, ilustra a nota de 10 libras esterlinas, assim como estrelou a moeda de 2 por algum tempo. A diferença é o valor – não da literatura de ambas, cada vez mais celebradas, mas do dinheiro.

No ¼ de século desde a volta do cruzeiro, que depois virou cruzeiro real e em seguida real, o cenzão da poeta hoje valeria meia dúzia de zeros à direita, antes e depois da vírgula: R$ 0,000003. Em 1994, as cédulas foram substituídas e Cecília saiu dos bolsos. Na Inglaterra, o substituído por Jane foi o cientista Charles Darwin, aquele da teoria da evolução, terror dos criacionistas, como os pastores protestantes. E adivinhe… o pai de Jane, George, era terrivelmente reverendo anglicano.
O príncipe Charles se tornou rei em 2022 e, 30 meses após, foi com a falecida mãe para a nota de 10 libras. Em vez de ser sacada dos cofres, Jane passou a circular com os dois nobres, na oportunidade em que o Banco da Inglaterra se mostrou preconceituoso, ao menos em relação aos feios: em vez de Camila, imprimiu Elizabeth II. Claro que uma fofoca palaciana desse vulto seria muito bem narrada pela autora de “Orgulho e preconceito”.
Observe-se a tijolada no início desse livro:
“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro, possuidor de uma boa fortuna, deve estar necessitado de esposa.”
Isso é apenas a primeira das frases duras em diálogos de personagens que nas mãos de outros seriam boazinhas ou de narradores alheios aos fatos – na verdade, da narradora, ela mesma, filha de reverendo nascida numa microvila de 12 dúzias de almas, menor que a Capelinha na minha Anicuns natal. Lembrando que era o interior do Reino Unido na era vitoriana. À época, esperava-se da mulher que aspirasse no máximo ser a pretendida pelo solteiro para esposa, com a família inteira a garimpar-lhe um com boa fortuna.
Jane não deixou fotos nem filhos e os parentes destruíram sua correspondência. Todavia, dela ficou tudo, o retrato pronto e acabado (melhor seria dizer, sem vitorianos na audiência, cuspido e escarrado) daquela parte da Europa nos primódios do século 19. Leia um parágrafo de “Razão e sensibilidade”, traduzido por Roberto Leal Ferreira:
“Nem bem havia terminado o funeral de seu pai, quando sua esposa, sem nenhum aviso prévio para a sogra, chegou com o filho e os empregados. Ninguém poderia discutir seu direito de vir, a casa pertencia ao marido desde a morte do pai, porém a indelicadeza de sua conduta era enorme, e para uma mulher na situação de Mrs. Dashwood, tão suscetível, deve ter sido tremendamente desagradável. Porém em sua mente havia um sentimento de honra tão intenso, uma generosidade tão romântica, que qualquer ofensa desse tipo, seja quem for que a provocasse ou recebesse, era para ela motivo de um desgosto irreparável. A esposa de Mr. John Dashwood nunca foi muito benquista pelos parentes de seu marido, mas, até o momento, ela não tinha tido a oportunidade de mostrar-lhes com que falta de consideração pelos outros seria capaz de agir quando a ocasião exigisse.”
Deixe-me adivinhar: você evitava as obras de Austen por ouvir que seria autoajuda e, poucas linhas depois, está louco para concluir que parece Shakespeare. No entanto, teme o cancelamento. É proibido comparar seu conterrâneo com qualquer outro de língua inglesa, só que esse enredo cheio de intrigas, essas famílias complicadas, os punhais cravados nas costas dos amigos, isso é muito… Jane Austen.
A cédula de 100 cruzados novos tem desenhos e estes versos de Cecília”:
“Sê o que o ouvido nunca esquece
Repete-se para sempre
Em todos os corações
Em todos os mundos”
Em sua nota de libra esterlina, Jane diz que “não há prazer maior do que ler”.
Neste Natal, compre as obras de ambas e doe de presente, inclusive de amigo secreto. Em todos os corações e mundos não há prazer maior que ler com quem se quer agradar. Os livros estão mais caros que o R$ 0,000003 da nota de 100 cruzeiros, porém há diversos por menos de 10 libras – no câmbio do 250º aniversário, R$ 7,35 cada. Valem cada pêni.

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Alan Ribeiro
Alan Ribeiro

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