Brasil piora a olhos vistos, mesmo os mantidos fechados

Demóstenes Torres

O joão-de-barro pode até ser feliz ao arranjar uma companheira, como na canção de Teddy Vieira e Muhib Cury, que ouço agora na voz de Sérgio Reis. A ave, em vez de sofrer, deveria comemorar que a casa própria é para o seu bico e ganhou asas sem depender de tomar energético.

Não é uma boa morar nas planilhas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística que, mesmo com o governo forçando a barra para o aparelhar, insiste em trazer das ruas a realidade e atirá-la no nosso comodismo. Até o ano passado, divulgava-se trecho do Censo 2022 mostrando que 1 em cada 4 famílias residia de aluguel. Neste 22/8, outro órgão oficial, a Agência Brasil/EBC, assumiu que “parcela de famílias que pagam aluguel sobe 25% em 8 anos, mostra IBGE”. É número, não adianta fechar os olhos, pois o problema não se resolve num piscar.
O barro da biquinha salva o forno do pássaro e o pássaro do forno, já que os humanos enfrentam o desumano aumento no preço dos materiais, como informa a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC). Ao longo das décadas, os programas sociais têm servido mais para eternizar que para amenizar os efeitos das desigualdades. Em vez de promover o esforço para se livrar da demagogia, afunde-se nela quem lá está. Fui relator no Senado do Bolsa Família, que vem das ideias do bom baiano Antônio Carlos Magalhães. Sei que não há projeto de maior abrangência para combater o subdesenvolvimento que a escola em tempo integral, mas há casos em que a urgência é determinada não pelo maravilhoso som de Sérgio Reis, mas o da barriga roncando. E a fome é a pior das companhias, mais até que a do joão-de-barro.
Em vez de trancá-la pelo resto da vida, como fez a ave, é preciso ter porta para a precisão sair do cotidiano das pessoas. O beneficiário é tão honesto que, se encontrar ganho, se desvincula do programa social e vai tocar sua carreira no novo serviço, em sua loja, sua banquinha, seu e-commerce, sua oficina. Falta quem o capacite para a empreitada. O Brasil, novamente, beira o pleno emprego graças aos empreendedores, inclusive aos patrões de si mesmos. O pedreiro da floresta canta fazendo festa e seu colega de profissão que trabalha na cidade também está por cima da laje seca. São ofícios tão preciosos que agora cada qual tem “seu médico”, “seu dentista”, “seu psicólogo”, “seu pedreiro”, “seu encanador”, “seu marceneiro”.
Os economistas Sérgio Gobetti, Priscila Kaiser e Frederico Dutra pesquisam a concentração de renda no Brasil. Disseram ao Estadão que “a distância entre a renda dos mais ricos e a dos mais pobres avançou nos últimos anos”. O 1% mais rico tinha média mensal de R$ 103.807 e em quatro anos subiu 4,4%, o triplo da renda média, que cresceu 1,4%. Melhor ainda para quem é 10 vezes mais endinheirado que o rico: 0,1% teve a renda aumentada em 6,9%. Agora, quem vibra de verdade é o 100 vezes mais rico que o rico, o 0,01%, que está ganhando mais 7,9% ao ano.
Apesar de o título do editorial ser “A desigualdade se aprofunda”, esses dados são traduzidos na letra de Teddy Vieira e Muhib Cury:
“Fiz o contrário do que o joão-de-barro fez
Nosso Senhor me deu força nessa hora
A ingrata eu pus pra fora
Onde anda eu não sei”.
A outra alternativa é enxugar iceberg. Com o mesmo bico que levou raminhos para o galho da paineira, deveria abrir portas largas para a necessidade, essa ingrata, e deixá-la viver outros ares.
Deus dá força nessas e em todas as horas, desde que ninguém faça a vítima perder a esperança na vocação. Montou uma loja de roupas e quebrou. Péssimo empresário? Não, às vezes escolheu o ramo errado, o local errado, o público errado, mas o país é o certo e a escolha por empreender, mais ainda. Precisa se reprogramar em outro setor. Ah, sou bom para cozinhar, adoro receber pessoas em casa, vou montar um restaurante – não sem consultar especialistas, que estão a seu dispor em órgãos como o Sebrae.
O joão-de-barro, ao se deparar com sua esperança perdida, em vez de ficar cego de dor, deveria abrir os olhos para a oportunidade de ganhar dinheiro com sua aptidão para construir. Se a casa está cara e muita gente não pode comprar, pesquise outros produtos, faça uma que caiba no orçamento do público de Sérgio Reis (ou seja, o Brasil inteiro) e saia por aí a cantar fazendo festa – rende mais que fazer bico. Eis o país de se morar, ao contrário do Brasil do IBGE. Como noutra canção “João-de-Barro”, sucesso com Maria Gadú, de Leandro Léo e Rafael Portugal:
“O meu desafio é andar sozinho
Esperar no tempo os nossos destinos”.

Demóstenes Torres Demóstenes Torres, 64 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado. Escreve para o Blog do Alan Ribeiro e para o Portal do Alan.

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