
Pressupostos que precisam serem lembrados sobre uma questão importante que vem sendo alardeada pelas redes sociais e que precisam serem esclarecidas. Texto de Roberto Amaral.
A prática da intervenção militar, direta e indireta, nasce com a República, com o golpe de 15 de novembro de 1889 e com o governo inconstitucional de Floriano Peixoto e se consolida com os conflitos e levantes militares que se seguem num crescendo desde o levante da Armada (1893-1894); como processos em cadeia seguem-se os levantes de 1922 (Forte de Copacabana), 1924 (revolta paulista ou Revolta de Isidoro) e 1925 (início da Coluna Prestes-Miguel Costa), até a ‘revolução’ de 1930 e o governo provisório. Esse período é, por seu turno, marcado pelo levante paulista de 1932, o levante comunista de 1935, a implantação do Estado Novo em 1937 e o putsch integralista de 1938, até o golpe de 1945, que, depondo Vargas, assegurou a reconstitucionalização de 1946. A jovem democracia, porém, logo seria vítima de mais uma intervenção militar na ordem institucional, com a crise de agosto que culminou com a deposição e suicídio de Getúlio Vargas, presidente eleito em 1950.
A tênue normalidade constitucional seria truncada com a frustrada tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitscheck, eleito presidente da República em 1955. À tentativa de golpe comandada pelo brigadeiro Eduardo Gomes e o marechal Juarez Távora, interpôs-se o golpe vitorioso (ou contragolpe) dos marechais Henrique Teixeira Lott e Odílio Denys, ministro da Guerra e comandante do I Exército, respectivamente, depondo o presidente Café Filho. No governo, Juscelino sufocaria duas arruaças militares, a de Jacareacanga (1956) e a de Aragarças (1959), lideradas por oficiais da Força Aérea Brasileira. Uma intentona militar tentaria, em 1961, impedir a posse de João Goulart, e, derrogando o presidencialismo, lograria impor ao Congresso Nacional o parlamentarismo (a seguir rejeitado em plebiscito nacional) como regime de governo. Enfim, tivemos o golpe de 1964 e a longa ditadura que se seguiu e que ideologicamente sobrevive no pensamento político de setores expressivos das forças armadas.
Esses fatos mostram, ao lado da óbvia indisciplina, a preeminência da força militar, impondo pelas armas uma vontade que não emana da soberania popular. Essa preeminência fez das Forças Armadas brasileiras, na República de 46, o ‘poder moderador’ (um ‘quarto poder’ que se postava acima de todos os demais) que agora o STF intenta disputar, valendo-se da fragilidade de um Legislativo e de um Executivo irmanados no abraço de afogados no mar de corrupção em que estão envolvidos, a se sustentarem tão somente em virtude de se prestarem a destruir, de forma sistemática, as conquistas econômicas e sociais das últimas oito décadas, em benefício do “mercado” e do rentismo.
O que chamamos de República de 46 era, nesses termos, um regime sem maturidade, sem segurança política, sujeito a quarteladas e marcado pelo que então se convencionou chamar de ‘pronunciamentos’ militares, pois os ministros militares, principalmente o ministro da Guerra (como então era denominado o hoje comandante do Exército), falavam e eram ouvidos e consultados sobre tudo. Mas não só eles, pois a tal direito se arvoravam coronéis e seus ‘Memoriais’, e o Clube Militar era uma das instâncias mais efetivas de agitação de que dispunham.
Era um poder que amedrontava a todos, pois o único armado.
Um cenário inaceitável.
Naquele então os militares se pronunciavam sobre tudo o que dizia respeito à vida civil, sobre eleições e candidaturas, sobre salários dos funcionários públicos e reajuste do salário-mínimo, anunciavam vetos e aprovações, sancionavam e condenavam candidaturas. Tinham sempre a “última palavra” sobre tudo.
Essas considerações vêm a propósito do mais recente, insólito e inaceitável pronunciamento, político e assustadoramente golpista, do reincidente general Antônio Hamilton Martins Mourão, que, dizendo falar em nome de seu comandante e do Alto Comando do Exército, ameaça o país com uma nova intervenção militar, uma nova ruptura da Constituição, um novo crime coletivo contra a República. Seu pronunciamento, o general devidamente fardado (por quê?), teve como auditório uma loja Maçônica em Brasília, e nossa imprensa, cúmplice em todos os golpes levados a cabo em nossa história, não lhe deu até aqui a devida importância, como silente está o soi disant ministro da Defesa, como silente permanecem os democratas e liberais de carteirinha. O grave incidente seria ignorado se não tivesse sido filmado e distribuído pelas redes sociais. O primeiro registro, sumário, se seu pela Folha de S. Paulo on line só no domingo à noite, vindo para as páginas impressas apenas na segunda-feira. A indisciplina precisa ser cortada pela raiz e no caso do general Mourão, não pode passar em brancas nuvens, pois se trata de um reincidente de cinco estrelas, pois em 2015 perdeu o comando do III Exército após agredir os governantes aos quais devia obediência constitucional.
Nesta altura, qualquer silêncio será lido como tonitruante discurso de apoio. O repúdio à intervenção militar deve nos unir a todos. É filme que já vimos, de dolorosa memória.