Feminicídio cresceu nos últimos meses, mas a cultura da denúncia também / Agencia RBS

Por Gabriela Souza
(Advogada no escritório Gabriela Souza – Advocacia para Mulheres, que atende a causas femininas)

Neste dia 7 de agosto, comemoramos 14 anos de sanção da Lei Maria da Penha, que estabelece ser crime todo o caso de violência doméstica e intrafamiliar no Brasil. Criada a partir de uma condenação internacional, permitiu várias conquistas, como a facilidade na tramitação de ocorrências de violência doméstica contra mulheres e a criação de juizados e varas especializadas.

Mesmo “adolescente”, essa lei trouxe uma revolução no que se refere aos direitos das mulheres, porque não apenas garantiu a proteção e a prevenção da violência doméstica como, de forma mais ampla, trouxe um sistema jurídico de anteparo que possibilitou a elaboração de outras regulamentações. E, principalmente, dissipou uma cortina de fumaça que havia sobre a violência doméstica, numa ideia de que “em briga de marido e mulher não se mete a colher”.

Se hoje conversamos com uma adolescente de 14 anos, percebemos que ela naturalizou que, em briga de marido e mulher, de namorado e namorada, de crush, ou mesmo em algum abuso de balada, a gente olha e mete a colher, sim. Essa é a grande revolução da Lei Maria da Penha, que criou uma geração de meninas conscientes dos seus direitos – o que é transformador. Elas começam a adolescência e suas descobertas amorosas com um sentimento de pertencimento, algo que apenas o conhecimento é capaz de proporcionar.

Ao observar a história dos direitos, percebe-se que as garantias às mulheres têm apenas aproximadamente 200 anos. A legislação levantou ainda uma discussão importantíssima no contexto desses dois séculos de direitos das mulheres no mundo: antes, nossos corpos pertenciam à família ou aos maridos. Trata-se de um enfrentamento, então, não só de uma narrativa, mas de toda uma perspectiva histórica milenar que privilegiou o masculino e oprimiu as mulheres.

As leis foram desenvolvidas por homens e para homens, em uma espécie de “a bola é minha e joga quem quer”. Sorte a nossa que há 14 anos as regras desse jogo mudaram por aqui.

Uma cultura demora em média quatro ou cinco gerações para ser modificada, facilitando a compreensão de que as legislações para mulheres surgiram de forma muito sutil. Eu não nasci com a Lei Maria da Penha vigente; a minha mãe conquistou o direito de divórcio; as nossas avós e bisavós não podiam votar. Estamos em um momento em que as meninas que nasceram nestes últimos 14 anos já vieram ao mundo mais protegidas pela Lei Maria da Penha. Ter isso em suas entranhas deve ser uma sensação muito boa, um sentimento talvez parecido com o que os homens têm há 2020 anos, de ter direitos garantidos. Isso é a base da ideia de empoderamento.

As leis foram desenvolvidas por homens e para homens, em uma espécie de ‘a bola é minha e joga quem quer’. Sorte a nossa que há 14 anos as regras desse jogo mudaram por aqui.

Mesmo com a legislação praticamente debutando, ainda se levanta a questão irreal de que as mulheres “querem ser mais do que os homens”. Mas é inegável que, desde 2006, a palavra feminina começou a ter mais validade. Tanto que a Lei Maria da Penha é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas (Unifem), da Organização das Nações Unidas (ONU), uma das três leis mais avançadas entre os países que têm regulamentação sobre o tema. São progressos importantes quando se fala de novos direitos, porque agora já não se tem vergonha de dizer-se feminista – antigamente, soava como raivoso.

Nesse contexto, estamos falando também de representatividade feminina nas candidaturas nas eleições. Em breve, saberemos o que essa geração que nasceu sob a guarda da lei deseja, uma vez que votará pela primeira vez em 2022.

Simone de Beauvoir já dizia que basta uma crise para que as conquistas das mulheres sejam retiradas. Na quarentena que vivemos em função da pandemia da covid-19, os direitos das mulheres são os mais afetados. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FSBP), em relatório de junho, os casos de Feminicidios cresceram 22,2% no país entre março e abril deste ano em 12 Estados comparativamente a 2019. Há ainda o desemprego, porque muitas mulheres são as únicas responsáveis pelo sustento de suas famílias. Quase metade dos lares brasileiros (34,4 milhões) são chefiados por mulheres, algo que não ocorria em um passado próximo, conforme levantamento do começo do ano da consultoria IDados realizado a partir de números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Precisamos ficar muito atentas e atentos, porque a Lei Maria da Penha, assim como uma jovem de 14 anos, precisa de todo nosso cuidado e atenção. Quando dizemos que vamos juntas, que uma puxa a outra, são desafios meus e de gerações para nos tornarmos mais visíveis, mais empoderadas, mais conscientes dos nossos direitos. É uma luta árdua e diária para não perdermos nossas conquistas. Porém, nada é mais revigorante do que o desejo adolescente por mudança e justiça.

Em crescimento

  • Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os casos de feminicídio cresceram 22,2% entre março e abril deste ano, comparativamente ao ano passado. Os dados são da pesquisa Violência Doméstica Durante a Pandemia de Covid-19, divulgada em junho e que mapeou a violência contra a mulher em 12 Estados brasileiros.
  • No Rio Grande do Sul, conforme a Secretaria da Segurança Pública (SSP), o primeiro semestre fechou com 24,4% mais crimes desse tipo do que o mesmo período no ano passado: entre janeiro e junho, foram cometidos 51 feminicídios no Estado, contra 41 em 2019.
  • Campanhas foram lançadas para garantir que as vítimas tenham mais possibilidade de pedir ajuda mesmo em isolamento social.